10 fevereiro 2017

BELEZAS E RIQUEZAS DA SERRA. HORA DO BANHO II


Eram frios os dias que passavam. Não tão frios quanto há décadas, mas frios. A vaga polar que atravessara a Europa e assolava o país enregelava tudo e todos. Sobretudo os mais desfavorecidos, do ponto de vista da idade, do estado de saúde, da habitação e do vestuário. Contrariamente ao que era insinuado pelo provérbio “Deus dá o frio conforme a roupa”, um dos muitos que serviam a passividade e a aceitação acrítica.

Depois da geada negra devastadora, a branca cobria os campos, fazendo-os parecer nevados e crocantes, como um qualquer prato de vegetais gourmet! 

Por falta de os vizinhos que trabalham, que não devido ao excesso de frio, lá fora, apenas os pássaros esvoaçavam contentes, uns bicando o chão à procura de alimento, outros disputando o grãozito mais apetitoso do comedouro, outros tratando da higiene. 

E, a propósito de higiene, são muito limpinhas as aves! Aparentemente muito mais do que alguns humanos e outros mamíferos, a julgar pelos sinais que exalam. Faça sol ou chuva, nada as impede de um bom banho. A não ser a falta de água! 

Foi o que aconteceu ao chapim-azul. Quando quis banhar-se, encontrou a água gelada, exatamente como algumas pessoas. “Coisa mais estranha!”, pensou, enquanto batia com o bico ínfimo no gelo duro e luzidio. 

Do sítio de onde o observava, lembrei-me do meu avô José Martins, que se lavava na rua, depois de quebrar, a murro ou com a primeira ferramenta à mão, o gelo que cobria a água dormida ao relento. Demasiado tenro para o efeito, o bico do passarito não conseguiu! “Tristeza! Sem banho sabe-se lá por quantos dias! Talvez um balde com água …” 

Chegou apressado, a saltitar irrequieto de roseira em roseira. De repente: “Olá!, equipamento novo! Humm…, água fresquinha! A banheira não parece cómoda, mas à falta de melhor … “

Pata ante pata sobre a borda fina do balde, banhou-se animado, mergulhando a parte anterior do corpito e batendo as asas para molhar o dorso seco. Ao mesmo tempo, evitando cair de molho! 








Com aquele espalhafato todo, lembrei-me de novo do meu avô, que se lavava, sacudindo o bigode farto, talvez para não gelar, e soltando brerrrrrrrrs assustadores, com os lábios trementes. Tanto tempo passado, a mesma admiração, o mesmo enlevo!

Enquanto o chapim se lavava, um pisco-de-peito-ruivo esperava, paciente, sobre uma pedra em degelo. Sempre a fazer vénias, do alto das patitas magras que lhe sustentam o corpo roliço. Antes, tinha estado a cantar, melodiosa e suavemente, como se soubesse que o dia não estava para cantorias.




Quando a subida da temperatura permitiu a remoção do gelo da artesa, tudo voltou à normalidade, com o rabirruivo, os chapins, o pisco, o tordo, a toutinegra, o melro e outros a banharem-se satisfeitos. Com exceção para os pardais, um de cada vez, numa extraordinária lição de respeito mútuo e privacidade! E de cabal utilização de um equipamento coletivo!
















As imagens não são grande coisa, a singeleza do texto é a habitual. Ainda assim, partilho-as com todos os que apreciam as maravilhas da criação, nomeadamente a beleza e as proezas das aves, esperando contribuir para a sua proteção e preservação. Elas que são uma componente essencial da vida e da natureza, cujo valor independe do homem, mas de que ele pode beneficiar como recurso, no âmbito do ecodesenvolvimento e da sustentabilidade local e regional. Aumentar os efetivos seria um bom sinal, manter os que temos é um imperativo.

Lisete de Matos

Açor, Colmeal, 04 de fevereiro, 2017.

9 comentários:

Catarina disse...

Dra. Lisete,
Que maravilha captar estes momentos e ter a amabilidade de partilha-los connosco!
Muito Obrigada!
Beijinhos

Casa da Ginja disse...

Cada vez são menos os passarinhos e os que escrevem com esta singeleza tão elucidativa e tão natural. Por mim, revi aves da minha infância e juntei ao meu vocabulário uma palavra nova - artesa. Obrigado.

António Santos disse...

Excelente como sempre.
Lisete de Matos é uma observadora da Natureza como poucos. Uma Natureza cada vez mais mal tratada. E a facilidade com que escreve cativa-nos. Permito-me roubar um pouco das suas palavras no final do texto, humildes e cheias de esperança, em que diz "As imagens não são grande coisa, a singeleza do texto é a habitual. Ainda assim, partilho-as com todos os que apreciam as maravilhas da criação, nomeadamente a beleza e as proezas das aves, esperando contribuir para a sua proteção e preservação."
Seria muito interessante que mais utilizadores deste blogue partilhassem as suas ideias sobre a preservação da natureza.
A propósito de artesa, sugerimos uma consulta ao livro da Dr.ª Lisete de Matos "DOS OBJECTOS PARA AS PESSOAS", edição de Junho de 2007, onde na página 83 vêm fotos de várias, em pedra, granito ou em madeira. Um livro que é uma "memória para o futuro".
Obrigado Lisete de Matos.

Anónimo disse...

Comecei o meu comentário,
Sem saber o que mais dizer...
O artigo acima é extraordinário,
A todos recomendo ler...

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Fala-nos dos passarinhos,
E da sua beleza irrepreensível...
Com doze anos eu ia aos ninhos,
Era uma experiência irresistível...

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Lavam-se com água fria os chapins,
Por vezes já congelada...
Assim fazia o “ti” José Martins,
Partindo o gelo à martelada...!

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São tempos que já lá vão,
Mas é importante considerar...
Devemos com convicção,
Estas belezas preservar....!!!


Armando de Almeida
Açor, Colmeal

Anónimo disse...

Excelente trabalho!
Parabéns e venham mais reportagens destas, que nos fazem revisitar as terras do Colmeal, mesmo estando longe.

Rui Ferreira

Maria Lucília disse...

Parabéns Drª. Lisete

Muito obrigada por mais um trabalho extremamente interessante.

Beijinhos
Maria Lucília

Anónimo disse...

Gostava de ter o seu dom da palavra, para lhe retribuir o bem que me fazem os seus textos! Tanta sensibilidade, tanto sentido de oportunidade e capacidade de observação, associados a um conhecimento profundo da nossa serra e das nossas gentes... tudo isso, generosamente, partilha connosco nos seus textos e imagens, permitindo-nos ver o que viu, sentir o que sentiu.
Bem-haja!
Deonilde

Anónimo disse...

Bem hajam pelo acolhimento, representando adesão à causa e compromisso.

Abraço.

Lisete de Matos

Anónimo disse...

Adoro a natureza, qualquer animal me encanta, a inteligência dos pássaros fascina-me. Nas traseiras do meu prédio apareciam imensos pardais e eu durante muitos anos atirava-lhes trinca. Quando me levantava lá estavam eles nas árvores à espera do pequeno almoço. Alguns, mais atrevidos, vinham até bem perto de mim. Um dia vieram também os pombos e estabeleceu-se a confusão. Os vizinhos começaram a reclamar e eu fui obrigada a parar. Durante muito tempo andei doente por vê-los à minha espera e eu não poder fazer nada. Agora só aparecem alguns esporadicamente e fico a pensar, será que vêm matar saudades?
Estas fotografias analisei-as uma a uma calmamente. Matei saudades dos meus passarinhos! Muitíssimo obrigada pela partilha, vou ficar atenta para o que vier a seguir.
Maria Clara Costa