Os «Contos de Fajão» tão oportunamente
recolhidos por Monsenhor Nunes Pereira tornam-nos espectadores de tramas
movimentadas e pitorescas representadas por uma galeria de personagens
finamente recortadas pelo olhar perspicaz, atento e sensível do artista, sobre
a cultura e tradições da antiga vila de Fajão. Efectivamente, sem perda do
colorido e sabor tradicionais, o recolector soube captar com todo o rigor e
expressividade o imaginário da auto-caricatura introspectiva, contrastante na
sua ingenuidade e sagacidade jocosa, por vezes brejeira, mas acima de tudo de
raiz popular, traduzida no registo escrito dos contos.
O valor pedagógico
desta obra é referenciado sobretudo na figura do «almocreve», herói cultural
que introduz soluções oportunas e «miraculosas», nem sempre devidamente
assimiladas, a exemplo de «A caça aos ratos» ou «Como os de Fajão iam à serra
todos os dias buscar a manhã», como ainda na emblemática personagem do «Juiz»,
tão irreverente quanto protagonista de sentenças justas e prontas.
A obra encontra-se
enriquecida pela introdução de reproduções de xilogravuras expressamente
executadas por Monsenhor Nunes Pereira para ilustrar a temática de cada um dos
contos. (A Direcção do Museu e Laboratório Antropológico 15Mai1989 - Na Nota
Prévia à 1ª Edição)
COMO OS DE FAJÃO IAM À
SERRA TODOS OS DIAS BUSCAR A MANHÃ
Antigamente os de Fajão
não sabiam quando era manhã para se poderem levantar. Então resolveram em
assembleia geral, que era na Raseira, escalar cada mês um lavrador para ir à
Serra buscar a manhã. O que estava escalado prendia os bois ao carro, punha-lhe
uns sacos em cima e abalava para a Serra, ainda de noite, para ir buscar a
manhã.
Aconteceu que um dia
calhou pernoitar um almocreve em casa dum lavrador. Altas horas da noite ouviu
reboliço em casa e perguntou que era aquilo. Disseram-lhe que estavam a prender
os bois e a preparar o carro para ir à Serra buscar a manhã, porque aquele mês
tinha-lhe calhado na escala.
O almocreve viu logo
ali uma boa ocasião de fazer negócio, e perguntou:
Quanto dão vocês a quem
vos traz um bichinho que todos os dias vos diz quando é de manhã?
- Trinta mil réis e uma
carga de presuntos (era o dinheiro de Fajão).
Eles aceitaram, e o
almocreve, à volta, trouxe-lhes um galo. O galo cantava logo de manhã e assim
eles escusariam de ter tanto trabalho para ir buscar a manhã.
Mas esqueceram-se de
uma coisa: não perguntaram ao almocreve que é que o bicho comia. Lá vai então
um a correr a ver se ainda apanhava o almocreve para lhe perguntar que é que o
bicho comia. Logo que o avistou perguntou cá de longe: Ó senhor, que é que o
bicho come?
- Ora! Que é que o
bicho come! Come do que come a gente!
O homem entendeu «o
bicho come a gente». Passou parte ao povo, «o bicho come a gente», e todos à
uma se atiraram ao pobre bichinho até darem cabo dele, e assim continuaram a ir
todos os dias buscar a manhã, cada um conforme a sua escala.
“Os Contos de Fajão”,
Edição da Junta de Freguesia de Fajão para o Museu de Fajão
Biblioteca da UPFC