Recentemente, encontrei
um livrinho que tinha perdido, de tão estimado que o guardava com outras
preciosidades. Trata-se de “Canção Popular”, da autoria de Manuel Alves Caetano
Júnior (Figueira da Foz, 1954).
Manuel Alves Caetano
Júnior nasceu no Sobral, Colmeal, em 1883, sendo filho de Manuel
Alves Caetano e de Maria dos Prazeres, tia do meu avô paterno José Martins, que
também era do Sobral. Daí a dedicatória: “Pela consideração que tenho por meu
primo José Martins, ofereço-lhe este livro em 9 de Junho de 1954. a) Manuel
Alves Caetano Júnior”. Era tio-avô de Fernando Pinto Caetano, em cujas “Gentes
e Famílias da Freguesia do Colmeal” colhi a informação genealógica, e avô de
Lucinda Jordão, que me facultou a fotografia. Obrigada.
Reli o livro
enternecida, pelo encanto de que se reveste, mas também devido ao contacto que
me permitia com familiares que gostaria de ter conhecido. Dessa obra, que vale
a pena ler, enquanto expressão poética do autor e testemunho de um tempo, transcrevo
duas produções relacionadas com a serra e a
terra.
AMOR À TERRA
NATAL
Embora
que pelo mundo
Eu
ande longe de ti,
Tenho
cá bem no fundo
Ó
terra onde nasci!
Eu
amo as serranias,
Delas
sou, tenho amor
A’s
paisagens bravias,
Aos
matagais em flor.
Gosto
sim da minha terra,
De
seus vales e oiteiros,
‘Té
dos ‘scarpados da serra
Onde
as águias têm poleiros.
Assim
como as aves têm
Muito
amor aos seus locais,
Como
elas sou também
E
não só, também os mais.
SAUDADE
Na
aba da serra umbrosa
Que
daqui velo além,
Fui
criança venturosa
Lá
junto da minha mãe.
Já
lá vão que largos anos,
Que
perdi aqueles amores,
Meus
pais que eram serranos
E
ambos eram pastores.
Ó
fado, como é triste
Já
lá não ter doce abrigo!
Nem
sequer já lá existe
Meu
rafeiro tão amigo!
À
face desta idade
Como
outra foi ditosa,
Infância
e mocidade
Na
aba de serra umbrosa!
A tendência poética e a
arte de versejar são transversais a muitas sociedades, entre as quais a
portuguesa, e a poesia precede a prosa praticamente em todas as literaturas.
Apesar desta regularidade, continuo a reagir comovida e espantada perante o
talento e a sensibilidade dos que agarram a escrita e escolhem a poesia, mais
ou menos popular ou erudita, para exercer a palavra e intervir, proporcionando
aos outros emoção e fruição estética e intelectual.
Na realidade, se a
poesia e os poemas são a arte de deleitar pelo uso metafórico e conotativo da
linguagem e das ideias, se configuram manifestação de beleza e sugestão
estética, então, eu vejo e admiro os poetas como autênticos feiticeiros de ingredientes
que transformam na poção mágica e regeneradora que a poesia pode ser. Pois não
combinam incorporando, no caldeirão fundo da sensibilidade e da inteligência, estados
de alma e sentimentos com a reflexão sobre temas, usando a imaginação e a
multiplicidade dos recursos linguísticos? Dom fascinante, notável capacidade de
trabalho!
Cingindo-me ao Colmeal,
falo de Manuel Alves Caetano Júnior, que também pintava, mas igualmente de
Felisbela de Almeida Fontes, José Fernandes de Almeida e Josefina Almeida. São
poetas diferentes, do ponto de vista dos estilos e géneros dominantes, mas têm
em comum alguns temas, sendo mais e menos intimistas ou hétero e sociocentrados.
Com produções de juventude ou pontuais ocorrem-me, ainda, os nomes de José
Martins Nunes, oriundo de Ádela e Armando Jacinto de Almeida, natural do Açor, que
há tempos me enviou uns versos deliciosos sobre a intrépida aventura da nossa
ida à escola, nos remotos anos cinquenta do século passado.
Felisbela de Almeida
Fontes é natural de Ádela, Colmeal. Sempre gostou de
escrever e começou a fazê-lo bem jovem para “O Colmeal”, o jornalinho a
desempenhar o papel de estímulo à escrita, enquanto servia de laço de união
entre os colmealenses que iam e ficavam! “Quando não tínhamos notícias e o padre
Fernando insistia, fazíamos uns versos”.
- “Beira Serra meu
Portugal escondido”. Ed. da autora, 2012;
- “Um Sonho na
Madrugada”, Editorial Minerva, 2011;
Integra as seguintes
coletâneas:
- “Poiesis - Antologia
de Poesia e Prosa Poética Portuguesa e Contemporânea”, Vol. XX, Lisboa, Editorial
Minerva, 2011;
- “Poética. Antologia
da poesia e prosa poética portuguesa contemporânea”, vol. I, Lisboa, Editorial
Minerva, 2012;
- “Poética. Antologia
da poesia e prosa poética portuguesa contemporânea”, vol. III, Lisboa,
Editorial Minerva, 2013.
OBRIGADA
Há
coisas belas no mundo,
Que
nos tocam cá no fundo,
Que
dão lugar a uma história,
Que
se escrevem ou se pintam,
Ou
se retêm na memória.
De
muitas, duas na ideia:
De
Ulisses a Odisseia,
Que
o grande Homero contou;
De
ti as mil maravilhas,
Que
a minha alma encontrou.
Mil
folhas de louro, hera,
Cravos
e rosas vermelhas,
Boninas,
lilás silvestre;
Recebe
isto, pois de mim,
Pelo
amor que me deste.
PASTOR
I
Pastor destas serranias,
Que ao teu gado dás sustento,
Nos montes nascem-te os dias,
E sempre ao rigor do tempo.
II
Cantando por esses montes,
Olhando cada colina;
Beber em todas as fontes,
Água pura, cristalina.
(…)
V
Agora os montes são mudos,
Ao gado não dão comida,
Trocaste-los por estudos,
Serras lindas, tão sem vida.
VI
Chocalhos dantes, que agora,
Num canto adormecido,
Com saudades de outrora,
Seu timbre solta um gemido.
VII
Adeus aldeia, adeus gado,
Vou procurar melhor pão,
No presente está o passado,
Nas marcas que não se vão.
José Fernandes de Almeida foi nascer a
Lisboa, mas passou a infância em Ádela, Colmeal, de onde se afirma pertença:
“Sepultai-me longe da cidade que me viu nascer / Sepultai-me na aldeia que me viu
crescer” (“Quando eu morrer”, in “Metamorfose …”). Começou a escrever quando frequentava
a escola, e sempre gostou de o fazer. O primeiro poema - “É tempo” - escreveu-o
aos dezoito anos. Tanto pode não escrever, como fazê-lo sem parar. “A pessoa vê
um assunto e interessa-se. Inspiram-me especialmente os temas históricos e
religiosos”.
O autor
publicou:
- “Metamorfose.
Desespero, Poesia, Esperança!”, Lisboa, ed. do autor, 1983;
- “Cadernos Poéticos
de um Pedregulho”, Lisboa, ed. do autor, 2003.
Atualmente
publica em “O Varzeense” (Vila Nova do Ceira, Góis) e, anteriormente, publicou
em “O Jornal de Arganil e na revista Arganília (Arganil).
ROUBARAM A BOLA QUE OUTRORA HAVIA
O
mundo era imenso no espaço a girar
Todo
o sonho livre o podia espreitar
planícies,
montanhas, mar que emergia
todo
o sonho livre pressentia harmonia;
o
mundo era bola em jardim a saltar
que
toda a criança podia agarrar,
quando
ela pulava cada um corria
bola
de todos que a nenhum pertencia!
Mas
alguém se lembrou de a bola riscar
E
logo outros loucos foram imitar,
Uma
porção de traços na bola surgia
Infinito
de mãos sobre ela caía
Dividindo
a bola que era de jogar,
Hoje
o mundo é fronteiras, longe a vogar
E
no jardim das crianças morreu a alegria
Pois
roubaram a bola que outrora havia!...
A MINHA MÃE
A minha
mãe é terra, arado e vento
É
semente, é leira e é levada.
É
milho, é pomar e é salada
É
vide, eira, forno e fermento;
E
minha mãe é berço, é crescimento
É
caminho, cansaço e pousada,
É
praia, utopia, gaivota e fada
É
caravela, lágrima e lamento;
A
minha mãe é poema enaltecido
É
escola e conselho permanente,
É
um sempre abraço espargido;
A
minha mãe é mar, sabiamente
É
verde de Esperança florido,
É
um anjo a crescer, eternamente!...
Josefina Almeida
é natural de Açor, Colmeal. Começou a escrever para exorcizar sem magoar, as
mágoas e dores que a entristeciam. “Para escrever tenho de estar magoada”. Escolhidos
o papel como confidente e a poesia como desiderato, primeiro escrevia e deitava
fora, depois começou a guardar.
A autora tem poemas
publicados no Boletim Cultural do Círculo
Nacional d’Arte e Poesia e nas seguintes coletâneas:
- “Antologia de Poesia Portuguesa
Contemporânea”, quatro edições, Edições Orpheu, Lisboa, 1988, 1989, 1990, 1991;
- “Antologia de Poesia
Erótica Contemporânea, Edições Orpheu, Lisboa, 1989;
- ”XII Antologia do
Círculo Nacional d’Arte e Poesia”, Lisboa, 2012;
- “Poética. Antologia
da poesia e prosa poética portuguesa contemporânea”, vol. III. Lisboa,
Editorial Minerva, 2013.
Nesta qualidade,
integra o “Dicionário de Autores da Beira Serra”, de João Alves das Neves,
Lisboa, Dina Livro, 2008, p. 31.
MÃE NATUREZA
Aqui
quase me sinto ainda pequena.
Em
tristezas não mais quero cismar,
Apenas
sentir o cheiro de açucena
E
minha alma soltinha a divagar.
Entre
raios de Sol que o rosto ilumina
Transbordando
de alegria e crença,
A
vida é bela, e como nos fascina,
De
vivê-la sentimos vontade imensa.
Por
aqui há flores que enchem espaços
E,
de rocha em rocha, águas cantantes,
Homens
e mulheres com força nos braços
E
rostos sorrindo, de ternura cativantes.
Aqui
no meio do mato e nestas serras,
Penso
que todos sentimos esta beleza,
Para
mim é viver alegres Primaveras,
Nesta
paz infinita, mãe natureza.
SENHOR
Dá-me
tempo Senhor
Para
reparar no tempo,
No
sol, na lua
E
até no vento.
Na
chuva que cai,
Com
pezinhos de lã
Sempre
tão fria,
Logo
pela manhã.
Olhar
a neve
Em
farrapinhos,
Gelada
também
Forma
montinhos.
Ver
as nascentes
Que
abraçadas
Formam
ribeiras
Que
limpam mágoas.
Para
ver as serras
Dá-me
tempo Senhor,
Para
ver paz na terra
Alegria
e amor.
Quatro poetas, quatro
exemplos de audácia e diferença, de conquista do poder da escrita escrevendo. Quatro
exemplos de “boa vontade cultural”, materializada na tenacidade com que
perseguem os bens simbólicos que distinguem, na distinção e indistinção (social)
ainda vigente. Uma honra e, ao mesmo tempo, uma pena, considerando o quase nulo
apoio de que estes criadores têm sido objeto, refletido na prevalência das
edições de autor e cofinanciadas. Até quando? A todos a minha homenagem e
gratidão.
Bom seria que os muitos
outros poetas e poetisas, seguramente existentes, dessem a conhecer o seu
talento, desse modo nos valorizando e enriquecendo o património imaterial
colmealense.
Lisete de Matos
Açor, Colmeal, dezembro de 2016.