04 julho 2011

PATRIMÓNIO CONSTRUÍDO E MEMÓRIA COLETIVA


Diziam-me há dias que na “Aldeia do Xisto” distante onde a pessoa vive, tinham revestido a lousas as paredes anteriormente rebocadas de um antigo lavadouro.

Se bem me recordo, o projeto “Aldeias do Xisto” visava a melhoria da qualidade de vida das populações, preconizando, no campo da arquitetura, a requalificação enraizada na tradição e nas competências locais, com vista à participação e à potenciação do património edificado e da cultura como recurso ao serviço do desenvolvimento. Por isso fiquei surpreendida com aquela decisão. Em nome de uma uniformidade incompreensível, no plano do património acabavam de proceder a uma alteração infundada, no plano sociológico, de apagar parte da história da povoação e da memória das pessoas que a habitaram. Sem prejuízo de o revestimento a lousa ser esteticamente interessante, e datar de há muito para imitar a construção antiga, evitando os custos da construção a pedra incorporada.



Alteração infundada, porque a construção tradicional serrana usava o xisto - mole e irregular ou ferrenho e faceado - como constituinte das paredes que os pedreiros erguiam com terra, martelo e fio-de-prumo.



A lousa, mais rara, só era usada nos telhados. Apesar da subordinação à topografia do terreno, aos materiais existentes e às necessidades da economia agro-pastoril de subsistência, era uma construção que apresentava diferença e diversidade, porque cada um era arquiteto e engenheiro dos equipamentos que construía. O poder económico também era diferente.



Apagamento da história e da memória pelas razões que passo a expor.

No interior serrano do centro, como em outras regiões do país, desde cedo que a população (e)migrou à procura de melhores condições de vida para si e para os seus. O fluxo de saídas engrossou a partir dos anos cinquenta do século passado, transformando-se no caudal volumoso do êxodo que veio a verificar-se nos anos sessenta e setenta. A maioria escolheu Lisboa como destino. Nas terras ficaram apenas os que ninguém “chamou”, chamando de ausência e saudade. Algumas dessas terras são hoje “Aldeias do Xisto”, muitas encontram-se despovoadas ou quase.

Inicialmente, as pessoas partiam para regressar, e para comprar terra (solo) e fazer casa no regresso. Partiam sobretudo os homens, ficavam as mulheres e os filhos pequenos, que iam mantendo a terra pobre produtiva (!). Ao mesmo tempo, os rapazes iam à escola, assim se preparando para o trabalho na cidade que os esperava, as raparigas nem sequer à escola iam.

A intenção de regresso e a distribuição bipolar das famílias foram determinantes para a emergência do regionalismo. Este consiste na organização, na cidade, dos naturais da Beira-Serra em associações (Comissões de Melhoramentos, Uniões Progressivas ou de Progresso, Ligas, Grupos de Amigos e outras denominações) destinadas a promover o bem-estar e o progresso nas aldeias de origem, através da intervenção no campo das infra-estruturas e dos equipamentos. Impelidos pela forte ligação às origens que os animava, queriam dotar as suas terras, a família que lá ficou e a si próprios no regresso, com as comodidades que encontraram na cidade e de que muitos mal usufruíram, por impossibilidade ou espírito de poupança exacerbado.

Neste processo, a par com as acessibilidades, foi dada prioridade aos chafarizes e lavadouros, por corresponderem a necessidades básicas, mas também porque acarretar água e lavar roupa eram tarefas essencialmente femininas (1). Mulheres com essas tarefas facilitadas, eram mulheres mais disponíveis para amanhar a terra que constituía o bem supremo!

Nessas longínquas décadas de meados do século passado, os que partiram ainda não se tinham reconciliado com a escuridão das paredes que os viram nascer ou que ajudaram a construir trazendo os materiais de longe. A revalorização da arquitetura tradicional e do xisto só veio a dar-se décadas mais tarde, com a consolidação da mobilidade social ascendente das novas gerações, que já não associam as casas dos avós a condições de vida difíceis, e com a globalização emergente, que favorece o retorno às identidades locais.

É pois natural que os “lisboetas” tenham privilegiado o gosto e os materiais urbanos na construção dos lavadouros, bem como na reabilitação ou construção que transformou as habitações em “casas de quem viu terras diversas da sua aldeia de xisto”(2) . Ainda hoje o manto branco da moda de então esconde a beleza das paredes exteriores nuas da minha infância. A preferência por um estilo mais urbano também ficou a dever-se – o cá e o lá sempre a interpenetrarem-se - às estradas de terra batida entretanto rasgadas, e à redução da mão-de-obra nas aldeias. As primeiras facilitavam o acesso aos materiais industrializados, a segunda tornava a extração dos endógenos mais cara.

Era esta história de (e)migrações, apego à terra natal e voluntarismo audacioso no quadro do regionalismo, dupla identidade e ascendência ora da urbana ora da rural, que as paredes rebocadas do tal lavadouro contavam, antes de terem sido revestidas a lousa. História que, afinal, continuam a contar, remetendo para gostos e preocupações actuais, e talvez dando razão aos que acusam de falta de alma algumas opções que têm sido feitas em matéria de requalificação do património. A modernidade assumida, desde que harmoniosa face ao ambiente e à volumetria dos conjuntos, pode ser preferível à reinterpretação dos estilos.



Daí o meu apreço pela intervenção que foi feita pela Junta de Freguesia do Colmeal, no Açor. Nesta localidade, onde a terra cultivável é escassa, era muito frequente a utilização de pedras ao alto para fazer estremas, e minorar os efeitos da inclinação do terreno. As pedras, que lembram pequenos menires achatados, faziam o papel de uma parede, com a vantagem de ocuparem menos espaço, e exigirem menos material e trabalho.

Recentemente, quando se tornou necessário refazer o muro de uma estrada, a Junta de Freguesia teve o cuidado de manter a tipologia da construção inicial, e de aproveitar as pedras que o cidadão Urbano - só de nome, apesar de ter andado pela cidade - acarretou pelas veredas ásperas da serra, haverá uns noventa anos.




Muito louvável este contributo da autarquia para a preservação do património construído, de que fazem parte os monumentos grandiosos, mas também os humildes poços e levadas, caminhos, poisos e marcos, paredes e paredões, pontes e pontões, moinhos e lagares, fornos e palheiros … Testemunhando as estratégias e o engenho que os antigos utilizaram para dominar a paisagem agreste e nela sobreviver, são um componente importante da memória coletiva e um recurso ao serviço da sustentabilidade económica, no presente e no futuro.

Lisete de Matos

Açor (Colmeal), 20 de Junho de 2011.


1 A este propósito, repare-se na simbologia do primeiro logótipo da União Progressiva da Freguesia do Colmeal, criada em 1931. Sobre o fundo constituído por um chafariz que jorra água de duas torneiras, o progresso é representado por uma mulher de cântaro à cabeça, a instrução por um rapazinho de livro aberto. O logótipo foi editado no blogue http://upfc-colmeal-gois.blogspot.com, em 20 de Junho de 2011.
2 Maria Alfreda Cruz, Uma Comunidade de Aldeias na Serra da Aveleira. Separata de Finisterra, Revista Portuguesa de Geografia, Vol.!-1, Centro de Estudo Geográficos, Lisboa 1966, P. 81. A autora refere-se à Lomba, Arganil.

1 comentário:

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